Passaporte Amarelo: a promoção tirânica do bem coletivo
7 de fevereiro de 2022É sabido que o uso de insígnias como forma de determinar o status moral do indivíduo não é algo novo. Os gregos já os utilizavam para marcar criminosos, traidores e escravos. Para Erving Goffman, tais marcas os reduziam simplesmente a pessoas manchadas, poluídas ritualmente, e que deveriam ser evitadas, especialmente em locais públicos.
Com os efeitos desastrosos da pandemia da Covid-19, líderes mundiais, me parece, têm tentado a todo modo encontrar a solução mágica definitiva para erradicar de uma vez por todas a doença. Para tal feito lançam mão de toda sorte de questionáveis – nada inovadoras, porém – medidas.
Após os delírios – que ainda seguem ameaçando por aí – da paralisação global da economia, uso obrigatório de máscaras de qualidade questionável – sobretudo as fornecidas pelo próprio poder público, como foi o caso das máscaras de papelão distribuídas pela prefeitura a moradores de uma certa cidade brasileira muito famosa – (exceto em eventos políticos [especialmente em período eleitoral], é claro). A [nem tão] novíssima onda do momento é o passaporte sanitário.
Segundo dizeres da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa) “a inexistência de uma política de cobrança dos certificados de vacinação pode propiciar que o Brasil se torne um dos países de escolha para os turistas e viajantes não vacinados, o que é indesejado do ponto de vista do risco que esse grupo representa para a população brasileira e para o Sistema Único de Saúde (SUS)”. Certo? Errado? Vejamos.
Em alguns trechos do “Boletim Observatório Covid-19 – Semana epidemiológica 41 e 42” de 10 a 23 de outubro de 2021, doutro importante instituto da saúde brasileira, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) fez coro à defesa da Anvisa no tocante a adoção da certificação sanitária. Alguns trechos da íntegra:
Certa vez, na França, o povo creu que determinados meios levariam o país a um fim glorioso. Baseados em ideias de transformação absoluta e radical, viram seu país já mal gerido, mergulhar numa sucessão de crises pré, durante e pós-revolução. A crença de que tal Revolução os levaria ao paraíso na terra sob o lema “Liberdade, igualdade e fraternidade” pairava sobre o coletivo – burguês –francês.
O mais conhecido líder desse período, Napoleão Bonaparte ganhou destaque liderando batalhas dos grupos revolucionários os quais clamavam por feitos que, mais tarde, ele próprio atuaria contrariamente. Foi ele, o Imperador, quem emitiu, em 2 de outubro de 1795, o “Decreto sobre a Polícia Interna dos Municípios da República de 10 Vendémiaire, ano IV”.
O que tal fato nos importa no Brasil em pleno século XXI? O instrumento do passaporte. A tentativa de segregação não é nenhuma inovação. Num momento é sobre [falsa] justiça, noutro é pelo [falso] bem coletivo. Assim diz o capítulo terceiro do decreto de 1795 que dispunha sobre os passaportes franceses:
O passaporte era a insígnia do cumprimento da lei, tal como, agora, do mesmo modo o é – haja vista que já foi adotado em vários “cantões”. Naquele contexto napoleônico, a razão de tal documento – conhecido por “passaporte amarelo” – a história se encarregou de nos contar: a ambição totalitária. Se tratando do contexto dos dias atuais, devemos esperar um resultado diferente? Por quê?
Não me refiro aqui a exigências de vacinação para se adentrar determinados países, tal prática existe há anos. Tampouco banalizo a questão do caráter emergencial das vacinas contra a Covid-19 ou mesmo a sua eficácia e efeitos colaterais já vistos, mas esta é uma outra discussão. E, para poupar o leitor da tarefa de me atribuir a insígnia “Antivax” – como são chamados aqueles que, no exercício de sua liberdade, ousam cometer o descalabro de não se vacinar – saibam, o “passaporte amarelo” desta autora está em mãos.
O químico francês, guilhotinado pelos revolucionários em 1794, Antoine-Laurent de Lavoisier, afirmou que “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Declaração pertinente.
Em 12 de novembro do ano que segue, a Anvisa emitiu as notas técnicas 112 e 113/2021 com orientações sobre o passaporte sanitário no Brasil. Observemos tais instruções baseadas nas respectivas notas:
Recomendações técnicas e alertas para entrada por via terrestre. • Passageiros vacinados ou que não possam se vacinar (não elegíveis): poderão entrar no país, desde que a segunda dose ou a dose única da vacina tenha sido tomada pelo menos 14 dias antes da entrada em solo brasileiro. Serão consideradas válidas as vacinas aprovadas pela Anvisa ou pela Organização Mundial de Saúde (OMS). • Passageiros não vacinados: não terão permissão de entrada por terra. Essas pessoas deverão entrar no país por via área, “em que os controles são mais adequados”, segundo a agência • Passageiros não vacinados que trabalhem no transporte de carga: poderão entrar no país sem restrições. • Passageiros que venham de países onde a cobertura vacinal tenha atingido a imunidade coletiva ou que estejam em níveis de cobertura vacinal e contexto epidemiológico considerados seguros: não terão exigência de vacinação. Recomendações técnicas e alertas para entrada por via área. Passageiros vacinados: • poderão entrar no país, desde que a segunda dose ou a dose única da vacina tenha sido tomada pelo menos 14 dias antes da entrada em solo brasileiro. Serão consideradas válidas as vacinas aprovadas pela Anvisa ou pela OMS; • terão que apresentar resultado de teste PCR ou de antígeno realizados em até 24 horas anteriores ao embarque (no caso do teste de antígenos) ou em até 72 horas anteriores ao embarque (no caso do PCR); • não terão necessidade de quarentena; • precisarão apresentar Declaração de Saúde do Viajante (DSV). Passageiros não vacinados: • terão que fazer auto quarentena; • terão que apresentar resultado de teste PCR ou de antígeno realizados em até 24 horas anteriores ao embarque (no caso do teste de antígenos) ou em até 72 horas anteriores ao embarque (no caso do PCR); • precisarão apresentar Declaração de Saúde do Viajante (DSV).
O passaporte francês não foi o primeiro e está longe de ser o último. Também não se perdeu, foi transformado para a realidade vigente.
O problema com esses anseios e ideias que querem salvar o mundo, seja econômica, cultural ou socialmente e, agora, sob a alegação da saúde coletiva, é que, quem defende ou executa tais ideais – quase sempre carregadas de ares escatológicos – assim faz baseando-se nas próprias ideias. Lênin, Mao, Stalin, Hitler e tantos outros também acreditavam estar salvando, purificando o mundo à sua maneira.
A Revolução Francesa não é tão somente a mãe das revoluções como dizem por aí, é a mãe – ou uma importante madrinha – do totalitarismo. Os revolucionários clamavam por liberdade e, em nome da ideia abstrata do que foram levados a crer ser a tal liberdade, muitos perderam a sua. O que é eufemismo uma vez que quem discordasse minimamente da Revolução tinha arrancada a própria cabeça. O que quero dizer é que, àquele momento, o ideal era a liberdade – ou concepção distorcida dela, pelo menos.
Hoje, o ideal totalitário possuiu uma nova roupagem, o bem coletivo. Os franceses perderam muito. Me pergunto, agora, do que estamos abrindo mão. A quem estamos entregando a guilhotina que pode cercear a nossa liberdade em nome do nem tão novo assim ideal coletivo?
Artigo escrito por Amanda Caixeta